As Garotas, de Emma Cline, foi publicado em 2016 e chegou ao Brasil no ano seguinte pela editora Intrínseca. O livro é ambientado na Califórnia durante o verão de 1969 e traz a história de Evie Boyd, uma adolescente de catorze anos. Filha de uma família abastada - sua avó era uma estrela de Hollywood -, a jovem leva uma vida privilegiada e bastante comum para alguém da sua idade e em suas condições, porém tudo começa a mudar após o divórcio de seus pais, a decisão de a mandarem para um colégio interno no próximo ano letivo e um desentendimento com a sua melhor amiga.
É neste contexto de transformações que ela conhece um grupo de garotas que despertam o seu fascínio - tanto por suas aparências (parecem descuidadas, abandonadas e vestindo trapos), quanto por transmitirem uma sensação de liberdade. Não demora muito para que Evie comece a desenvolver um relacionamento com essas garotas, lideradas por Suzanne, a mais velha, e passe a frequentar o rancho no qual elas vivem como parte de um culto liderado por Russel Hadrick.
O livro tem como inspiração os crimes cometidos pela família Manson e desde o início já sabemos que algo horrível irá acontecer. Isso ocorre porque quem nos conta a história é Evie nos dias atuais, que começa a recordar o verão de 1969 em uma tentativa de enxergar os indícios da tragédia que passaram despercebidos pelo seu eu adolescente e compreender os motivos que levaram aos crimes. Em partes, soa como se ela assumisse a sua parcela de culpa e tentasse se redimir de alguma forma.
Quando soube de As Garotas, imaginei algo um pouco diferente. Ainda que sem muita certeza do que iria encontrar, tinha em minha mente que a história seria sobre o culto e sobre os crimes e, neste aspecto, não poderia estar mais enganada. E ainda bem que isso aconteceu, porque o que encontrei acabou por me agradar muito mais. Ainda que a vida no rancho e a dinâmica de Evie com seus membros seja uma parte crucial, a história é muito mais do que isso. É sobre crescimento, amadurecimento e sobre o quão vulneráveis e manipuláveis adolescentes, especialmente meninas, podem ser. Principalmente se considerarmos o quanto essa fase da vida é marcada pela busca por aceitação e pertencimento.
Todos, depois, achariam inacreditável que qualquer envolvido com o rancho pudesse ter continuado naquela situação. Uma situação tão obviamente ruim. Mas Suzanne não tinha mais nada: ela entregara completamente sua vida a Russel, e àquela altura, era como algo que ele podia segurar nas próprias mãos (...). Suzanne e as outras garotas tinham perdido a capacidade de fazer certos julgamentos (...). Elas não tinham uma grande altura da qual cair - eu sabia que o simples fato de ser uma garota incapacitava sua habilidade de acreditar em si mesma.
(Pág. 264)
Toda vez que leio algo ou paro para pensar sobre Charles Manson e seu culto, fico chocada com o poder de influência que ele tinha e, ao mesmo tempo, não consigo compreender como aquelas pessoas se permitiram cativar por ele. Em seu livro, Emma Cline talvez tenha conseguido me fazer enxergar o mundo pela perspectiva dessas pessoas e, de certa forma, compreender o quão doentia suas mentes podem se tornar.
Outro aspecto que chamou a minha atenção foi a ambientação criada pela autora e a maneira como sua escrita nos envolve naquela atmosfera. Tudo é bastante visual, de um jeito meio cinematográfico. As descrições que Evie faz do rancho, de sua casa, de suas roupas e das pessoas com quem conviveu rapidamente me transportaram para o fim dos anos 1960, com suas músicas e movimentos artísticos e de contracultura tão icônicos. Adoro quando um livro me proporciona esse tipo de experiência. Mais um ponto que preciso destacar é Suzanne, a personagem que mais me intrigou durante toda a leitura. Por apenas a conhecermos pela perspectiva de Evie, bastante ingênua aos catorze anos, Suzanne permanece enigmática do início ao fim. Por vezes, parece dócil e divertida, tão ingênua quanto Evie; em outros momentos, é mesquinha, manipuladora e bem assustadora. É impossível chegar ao fim da leitura e entender as motivações da personagem e, principalmente, o porquê de ela ter assumido determinada atitude mais para o fim do livro. Talvez, assim como Evie, o leitor também não consiga condenar Suzanne completamente.
Por fim, acho importante mencionar que o livro tem um desenvolvimento que pode ser considerado lento para aqueles que buscam algo com mais ação. Como disse, o livro é sobre Evie recordando a sua adolescência e menos sobre os crimes que ocorreram naquele período. Em diversos momentos, a leitura me lembrou As virgens suicidas, de Jeffrey Eugenides, outro livro com desfecho trágico, mas que é muito mais do que isso e que traz significados escondidos nas entrelinhas. No livro de Eugenides, Cecilia Lisbon fala sobre a dificuldade de ser uma adolescente e é possível perceber algo parecido na história de Evie. As Garotas é um livro melancólico que termina de um jeito amargo e que te deixa pensando sobre a história durante dias. Leitura recomendada!