19 de março de 2015

Objetos Cortantes (Gillian Flynn)

Em Objetos Cortantes, o romance de estreia de Gillian Flynn (autora de Garota Exemplar), o leitor é apresentado a uma trama de suspense, mistério policial e drama familiar. Camille Preaker, uma mulher de trinta e poucos anos que trabalha como repórter em Chicago, Illinois, se descreve como medíocre em seu trabalho. Pouco tempo após sair de uma internação em um hospital psiquiátrico, ela recebe uma pauta de seu editor e terá que voltar à pequena Wind Gap, sua cidade natal localizada no estado do Missouri (EUA), para cobrir o caso de crimes cometidos contra duas garotas locais. Uma delas foi brutalmente assassinada e seu corpo foi encontrado sem dentes. A outra está desaparecida.

Oito anos após abandonar Wind Gap com a certeza de que não voltaria para lá tão cedo, Camille se vê obrigada a entrar em contato com seu passado, seus colegas da adolescência e sua família bastante disfuncional. Adora, sua mãe, é a mulher mais rica da cidade, além de completamente neurótica. Alan, seu padrasto, sempre se manteve distante. Amma, sua meia-irmã adolescente, é uma completa estranha. Sem manter contato com os familiares durante a sua ausência, Camille vira hóspede na casa de sua mãe e passa a ser atormentada por recordações dolorosas do período em que ali vivera, incluindo a morte de Marian, sua irmã, há muitos anos.

Aos poucos, conforme se insere novamente na comunidade da qual fez parte, Camille começa a juntar informações para a sua matéria e, ao mesmo tempo, luta contra o tempo e a má vontade dos locais para conseguir alguma declaração oficial sobre as investigações dos crimes. Assim que suas perguntas começam a encontrar algumas respostas, ela percebe que a cidade esconde segredos perturbadores e sombrios.

Já fazia tempo que queria conhecer o trabalho de Gillian Flynn e resolvi começar por Objetos Cortanteslançamento de fevereiro da editora Intrínseca. A partir desta primeira leitura, já pude sentir que a autora não evita tratar de temas delicados e polêmicos por medo de não agradar ao público.

Em termos de expectativas – que não eram altas para evitar frustrações com livros e/ou autores amados por muitas pessoas -, as minhas foram alcançadas. Não sabia muito bem o que iria encontrar e, de forma alguma, adivinhei o que o livro me traria. Gillian Flynn é uma autora bastante talentosa; a forma como ela escreve e conduz os acontecimentos deixam o leitor completamente envolvido e com vontade de chegar rapidamente ao final para saber o que vai acontecer com os personagens.

Narrado em primeira pessoa pela protagonista, o livro apresenta uma história linear marcada por algumas intervenções do passado feitas pela narradora. No tempo presente, quando Camille inicia a sua apuração dos ocorridos em Wind Gap, tudo é apresentado conforme vai acontecendo, porém, com frequência sua narrativa é interrompida por recordações do período em que vivera ali. Assim, o leitor só passa a ter conhecimento da real relação entre Camille e Adora por meio das divagações da primeira.

Camille é uma das protagonistas mais diferentes com quem já deparei em minhas leituras. Ao mesmo tempo em que consegui enxergar muita determinação e força em sua maneira de agir, não pude deixar de achá-la bastante vulnerável e frágil; principalmente quando está diante de sua mãe; e isso está completamente relacionado à sua internação em um hospital psiquiátrico e seus problemas com o consumo de álcool. Adora, por sua vez, me desagradou desde a sua primeira aparição. Ela é uma mulher fria, desequilibrada e controladora; e a forma como trata as suas filhas é, no mínimo, assustadora. Despreza Camille e dirige à Amma uma adoração doentia. Ambas vivem à sombra de Marian, a irmã perfeita e morta há anos.

Amma, devo confessar, foi a personagem que mais me fascinou no livro. Enigmática do início ao fim, a garota é detestável e imprevisível. Ela é a mais popular e bonita do colégio, consegue tudo o que quer e é capaz de irritar adultos de uma forma inexplicável. De forma contraditória, há momentos em que é adorável e gentil. Assim como Adora, ela é bastante manipuladora e o leitor, assim como Camille, nunca consegue interpretar os motivos por trás de seu comportamento volátil. 

Wind Gap, com seus costumes tradicionais e conservadores típicos de cidades pequenas, constitui um cenário propício para o tipo de história que Gillian Flynn se propõe a contar. É uma cidade em que todo mundo se conhece, marcada por boatos, disputas sociais e, claro, aparências que escondem vidas vazias e problemáticas. Os crimes cometidos contra as duas garotas choca a comunidade, que prefere acreditar que o responsável é alguém de fora, ao invés de um conhecido. A polícia se recusa a dizer algo sobre as investigações e a comunidade, de forma geral, enxerga Camille como uma intrusa, oportunista que apenas quer usar a dor local como um meio de vender mais jornais. (Neste ponto, a autora aproveita para, de forma sutil, apontar para uma realidade de nossa sociedade). Justamente pela relutância da polícia em declarar algo sobre o caso, Camille começa a sua própria investigação como uma forma de obter informações para a matéria. E é por meio de cidadãos comuns, com suas fofocas e verdades constrangedoras, que a solução surpreendente e medonha começa a se desenrolar.

Não vou mentir, esperava mais da investigação em si. Porém, conforme avançava na leitura, me dei conta de que a história era mais um drama familiar do que um mistério policial. Assim, me contentei em tentar compreender os motivos para a relação extremamente disfuncional entre Camille, sua mãe e sua irmã. Vale ressaltar que por meio da relação entre mãe e filha, Gillian Flynn trata de uma questão que contraria um pensamento generalizado que existe na sociedade em que vivemos: o de que mulheres não podem ser cruéis. Aceitamos de forma muito fácil que homens podem ser assassinos, sequestradores, torturadores, etc.; porém, dificilmente imaginamos uma mulher que se enquadre em tais perfis. Porém, com as ações de Adora e a maneira como ela trata suas filhas, assim como o comportamento de Amma, fica claro para o leitor que mulheres – mães inclusive – podem sim ser muito cruéis. E a forma como essa ideia se apresenta no livro é profundamente doentia, gerando desconforto ao leitor.

E acho que essa foi mesmo a intenção da autora, fazer o leitor se sentir mal e incomodado. A história é realmente pesada. É forte, violenta e perturbadora. Terminei a leitura por volta das 3h da manhã e ainda fiquei mais uma hora remoendo aquele final e tentando entender qual é a mensagem que Gillian Flynn quis transmitir. Até o momento em que escrevo este texto não consegui me decidir se gostei ou não do livro, mas garanto que gostei muito da experiência de leitura e acho que, apenas por este fato, Objetos Cortantes merece ser lido e recomendado. Se com seu livro de estreia, Gillian Flynn já conseguiu me afetar assim, imagino o que os outros farão. Garota exemplar já aguarda na estante.

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