8 de outubro de 2015

Matilda (Road Dahl)

Pois bem, estamos em outubro e, desde sempre, para mim este mês significa duas coisas: dia das crianças e dia das bruxas. Pensando na realidade de blogs e canais literários, outubro significa buscar livros infantis e de terror. Assim, hoje trago minhas impressões sobre a minha primeira escolha: Matilda, livro de 1988 escrito por Roald Dahl.

Matilda é uma garotinha de cinco anos que parece um peixe fora d'água aos olhos de quem analisa a sua família. Seus pais e irmão são mesquinhos e indiferentes; são pessoas vazias, fúteis e que não enxergam a educação como algo benéfico. Incompreendida, por vezes solitária, Matilda se descobre leitora e encontra refúgio nos livros. Após aprender ler sozinha com a ajuda de um livro de receitas de sua mãe, Matilda resolve ir até a biblioteca e, para a surpresa da bibliotecária, devora clássicos da literatura. Em sua lista estão títulos como As vinhas da ira, O velho e o mar, Jane EyreA revolução dos bichos, entre outros. 

Logo que chega à idade adequada, a menina passa a frequentar a escola, assistindo as aulas da Srta. Mel - uma mulher doce e que logo percebe que Matilda é especial -, que logo se mostram muito básicas para a sua capacidade. Ela também terá que lidar com a Sra. Taurino, a diretora da escola que odeia crianças e parece fazer de tudo para atormentá-las e/ou agredi-las. 

Conheci Matilda ainda durante a minha infância por meio da adaptação cinematográfica de 1996. Apesar de ser um favorito da Sessão da Tarde, não me lembro de ter assistido muitas vezes, de forma que nem tudo sobre o enredo permanecia em minha memória. Matilda é uma leitura leve e com uma narrativa simples, marcada pelo humor. É uma ótima opção para os pequenos leitores, pois, além de trazer uma história divertida, os apresenta à uma protagonista leitora e que enxerga nos livros uma forma de entretenimento. Assim, penso que o livro é um incentivo à leitura; até porque o narrador cita vários livros que Matilda leu, deixando o leitor com vontade de lê-los também. Aqui estão alguns dos que consegui anotar durante a leitura:

O Jardim Secreto, de Frances Hodgson Burnett
Grandes EsperançasOliver Twist , Sr. Pickwick e Nicholas Nickleby, de Charles Dickens
- O leão, a feiticeira e o guarda-roupa, de C.S. Lewis
Jane Eyre, de Charlotte Brontë
Orgulho e Preconceito, de Jane Austen
Tess, de Tom Hardy
Kim, de Rudyard Kipling 
- O homem invisível, de H.G. Wells
O velho e o mar, de Ernest Hemingway
O som e a fúria, de William Faulkner
As vinhas da ira e O potro vermelho, de John Steinbeck
Os bons companheiros, de J.B. Priestley
O condenado, de Graham Greene
A revolução dos bichos, de George Orwell 

Outro aspecto que me agradou é o fato de que Roald Dahl não subestima seus leitores. Engana-se aquele que pensa que por se tratar de uma história infantil Matilda é cheio de fofura. Os pais da menina são pessoas desprezíveis: a mãe defende a ideia de que uma menina não deveria ler, pois homens não se interessam por isso. Já o pai gosta de tirar vantagem de tudo e vive de um trabalho desonesto. Os dois demonstram pouco interesse pela filha e não conseguem compreender como ela pode preferir ler a assistir televisão. O pai, em um dos trechos mais revoltantes e tristes, destrói um dos livros de Matilda para forçá-la a ser como ele. 

Encaro os pais de Matilda como vilões mais assustadores do que a Sra. Taurino, porque sabemos que pessoas com estes tipos de pensamento são reais e me entristece pensar na quantidade de crianças que poderiam ter se tornado leitoras, mas que por falta de incentivo ou até crítica dos pais, acabaram perdendo o interesse pela leitura. A Sra. Taurino, apesar de malvada, é um pouco mais caricata. Claro que isso não a torna menos desprezível aos olhos dos leitores.

De forma geral, gostei de Matilda, mas, como de costume, sinto que teria aproveitado muito mais a leitura quando era criança; principalmente por ser fácil de se identificar com a protagonista. Quanto ao desfecho, creio que seja diferente daquele encontrado no filme; ainda assim, é um final satisfatório. Leitura recomendada para todas as idades.

9 de setembro de 2015

Androides sonham com ovelhas elétricas? (Philip K. Dick)

Androides sonham com ovelhas elétricas?, de Philip K. Dick, foi publicado em 1968 e traz uma história ambientada no então futurístico ano de 1992. Após a Guerra Mundial Terminus, a Terra foi devastada e a maior parte da população migrou para outros planetas, como Marte, que são chamados de colônias. Aqueles que ficaram - divididos entre Normais e Especiais - vivem em meio a uma poeira radioativa que afeta seus genes, causando diversos problemas de saúde, entre eles, a infertilidade. Os Especiais são as pessoas que foram afetadas pela poeira e que, por isso, não podem deixar o planeta e vivem excluídos.

A poeira também é responsável pela extinção de praticamente toda a vida terrestre, de forma que animais se tornaram artigos de luxo, capazes de conferir status a quem os possuir. A tecnologia, já bastante avançada, permitiu a criação de androides com o intuito de realizar serviços nas colônias. Parte máquinas e parte materiais biológicos, os androides atingem a cada novo modelo um patamar de semelhança - física e intelectual - com os seres humanos, de forma que é quase impossível distinguir um do outro. A principal diferença se encontra na capacidade de sentir empatia, exclusividade dos seres humanos. Ao longo das décadas, androides cansados da servidão fugiram para a Terra com o intuito de viver em liberdade, porém, ao chegar são encontrados pelos caçadores de recompensa que os "aposentam". 

Logo no início, o leitor é apresentado a Rick Deckard, um caçador de recompensas que vive com sua esposa em San Francisco e que, desde que sua ovelha verdadeira morreu, tem como principal objetivo a obtenção de um novo animal verdadeiro, pois acredita que isto irá agregar mais significado à sua existência e elevará o status de sua família. Enquanto esse dia não chega, ele vive de aparências com uma ovelha elétrica. Tudo indica que sua vida irá melhorar quando recebe uma nova missão: aposentar seis androides Nexus-6 fugitivos e receber um excelente pagamento por isso. Ao mesmo tempo em que segue com a história de Rick, o enredo também nos leva à J. R. Isidore, um especial que teve o seu QI reduzido pela poeira e vive solitário em um prédio abandonado e dominado pelo "bagulho" até o dia em que conhece Pris, uma das Nexus-6 procuradas por Rick.

Por meio de uma narrativa envolvente e direta, Philip K. Dick conduz o leitor por uma série de reflexões existenciais ao mesmo tempo em que levanta questões sobre avanços tecnológicos e científicos e até onde estes levarão a humanidade. Ao longo de toda a leitura somos apresentados à ideias, concepções e contradições que nos fazem perguntar o que de fato faz com que um ser seja considerado humano. São muitos os trechos em que Deckard age e pensa como um ser inanimado, quase como uma máquina programada para desempenhar uma função. Há também os momentos em que os androides se comportam de maneira quase humana, demonstrando sentimentos e ambições, como a vontade de viver e a busca por emoções.

Além desta questão principal, o autor também aproveita para fazer críticas à sociedade de seu tempo por meio do comportamento e de aspectos típicos da realidade pós-apocalípita de sua história. É assustador perceber que o que era criticado nos anos 1960 ainda se faz relevante hoje, como a ideia de ter para ser. No romance, Deckard, com o intuito de conseguir status social, faz o possível para que seus vizinhos acreditem que a sua ovelha elétrica é verdadeira, pois seria vergonhoso admitir que não tem dinheiro para comprar um animal. É fácil perceber forma de pensamento semelhante nos dias atuais, marcados pelo consumismo exacerbado e o exibicionismo em redes sociais. 

A ideia de escapismo - também bastante atual - é abordada na obra de duas formas: pela indução de sensações e pela religião. É possível observar que na sociedade criada por K. Dick há um certo vazio existencial e as pessoas, à procura de algum preenchimento espiritual, recorrem ao mercerismo - religião, na qual os adeptos fazem uma fusão por meio de um mecanismo chamado caixa de empatia. Nos dias em que está se sentindo triste, por exemplo, uma pessoa pode recorrer ao sintetizador de ânimo e em poucos minutos seu humor é alterado. E aqui encontramos mais semelhanças com a atualidade, quando muitas vezes nos anestesiamos para fugir da realidade.

De forma geral, gostei de Androides sonham com ovelhas elétricas?, porém não irei negar que senti estranhamento e dificuldade de imersão ao longo da leitura. Acredito que isso tenha ocorrido porque - ainda! - não estou acostumada com ficção científica, que é um gênero que exige tempo para que o leitor consiga se entregar completamente ao que está escrito nas páginas. Também senti falta de mais informações e/ou explicações acerca do mercerismo, um conceito complexo e interessante que não ficou tão claro (pelo menos para mim). Ainda assim, penso que foi uma leitura válida, que me fez sair da minha zona de conforto e levantou questões interessantes. Com certeza vou procurar outras obras do autor.

17 de agosto de 2015

O sol é para todos (Harper Lee)

 A primeira vez que ouvi falar de O sol é para todos foi em 2012 e desde então, fiquei com aquela sensação de que este era um livro obrigatório, daqueles que tinha que ler antes de morrer porque iria mudar a minha vida. Adiei a leitura na espera de um “momento certo” e ele chegou três anos depois, com o lançamento de uma nova edição pelo selo José Olympio, da editora Record.

O sol é para todos, romance de formação escrito por Harper Lee, foi publicado em 1960 e desde então tem conquistado gerações de leitores ao redor do mundo. Vendedor do Pulitzer e considerado um clássico moderno, o livro aborda questões que, mais de cinquenta anos após a sua publicação, se mantém atuais: racismo, desigualdade social e injustiça.

Pela da narrativa de Scout Finch, uma criança questionadora e de personalidade forte, Harper Lee, apresenta o leitor à Maycomb (Alabama) e à realidade do sul dos Estados Unidos na década de 1930. O livro é dividido em duas partes e tem início no verão em que Scout tinha apenas sete anos e estava ansiosa para iniciar a sua vida escolar. Na companhia de Jem e Dill – seu irmão mais velho e melhor amigo, respectivamente – a menina passa os dias ensolarados planejando travessuras, bem no estilo de Tom Sawyer, no clássico de Mark Twain. 

É também logo no início que a autora introduz Atticus Finch, pai de Jem e Scout, um advogado que se mostra a bússola moral de Maycomb. Viúvo, ele conta com a ajuda de Calpúrnia - uma mulher negra que é sua cozinheira e governanta-, para a criação de seus filhos, fazendo o possível para que eles aprendam a desenvolver o pensamento crítico e saibam distinguir o certo do errado. Atticus é um homem justo e respeitado a quem todos recorrem quando precisam de ajuda, e é por meio de seu trabalho que Scout e Jem irão perceber o quão problemática é a comunidade em que vivem.

"Em primeiro lugar, Scout, se aprender um truque simples, vai se relacionar melhor com todo tipo de gente. Você só consegue entender uma pessoa de verdade quando vê as coisas do ponto de vista dela." (P. 43)

A segunda parte do romance inicia quando Atticus precisa defender um homem negro acusado de estuprar uma mulher branca. A notícia revolta parte da população local e sua família passa a lidar com as consequências deste fato. Através do olhar puro de Scout somos apresentados ao racismo enraizado em Maycomb. Tom Robinson é inocente, mas é negro e para a maioria dos membros daquela comunidade este fator já é suficiente para lhe condenar sem provas ou julgamento. 

"Queria que você a conhecesse um pouco, soubesse o que é a verdadeira coragem, em vez de pensar que coragem é um homem com uma arma na mão. Coragem é fazer uma coisa mesmo estando derrotado antes de começar. E mesmo assim ir até o fim, apesar de tudo". (P. 143) 

A partir deste ponto, a história abandona aquele aspecto lúdico do começo e assume um tom sombrio, marcado pela perda da inocência das crianças Finch, que passam a enxergar o mundo como ele realmente é, tanto por perceberem a segregação e indiferença que há naquela comunidade, quanto por se tornarem eles também alvo da intolerância dos moradores de Maycomb. É revoltante para Scout – e para o leitor – perceber o quão hipócritas são os seus vizinhos.

Antes de ler O sol é para todos, fui levada a crer que a obra tratava apenas da questão racial, mas Harper Lee vai além e levanta outras questões importantes, como a desigualdade social e de gênero – que aparece de forma mais sutil - e a importância da educação. Com o julgamento de Tom Robinson, a defesa feita por Atticus – que defende que todo homem é igual perante a lei - e o desfecho do caso, o leitor passa a questionar o conceito de justiça e até que ponto ela se faz real.

"Mas antes de ser obrigado a viver com os outros, tenho de conviver comigo mesmo. A única coisa que não deve se curvar ao julgamento da maioria é a consciência de um homem". (P. 135) 

A leitura, apesar de tratar de temas fortes e densos, flui bem e acredito que isso ocorra por se tratar da perspectiva de uma criança (ainda que a narrativa seja feita quando Scout já é adulta, recordando os acontecimentos de sua infância). Ao mesmo tempo em que há doçura e leveza no texto, há também algo de muito doloroso e assustador. Mais triste é perceber o quanto esta história ainda se faz necessária e atual. 

Ao fechar o livro, fiquei com uma sensação amarga, sem saber se achei o livro lindo ou aterrador, pessimista e sem esperança. Há, definitivamente, algo de melancólico e contraditório em tudo e fiquei com a sensação de que a principal mensagem que Harper Lee quis passar é a da tolerância. Por fim, também não sei dizer até que ponto esta leitura me marcou, mas estou feliz por finalmente tê-la realizado. É uma leitura válida, sem sombra de dúvidas, e que recomendo.

7 de agosto de 2015

Sobre o preconceito em relação ao Brasil | Vida de Leitora #13

Esta semana concluí a leitura de Til, clássico do Romantismo Brasileiro escrito por José de Alencar. A decisão de realizar a leitura surgiu depois de assistir ao vídeo da Tatiana Feltrin, que me convenceu a dar uma chance para uma obra que, provavelmente, jamais atrairia o meu interesse de outra forma. Digo isso porque José de Alencar figurava na minha lista de autores mais detestados, decisão que resultava diretamente dos anos de Ensino Médio. Odiei tanto Iracema que até hoje, só de pensar no livro, sinto um tipo de arrepio sinistro. Assim, não só me surpreendi por ter decidido ler outra obra de Alencar, mas também por ter adorado a leitura a ponto de considerá-la uma das favoritas do ano! 

Esta experiência reveladora me fez perceber o quão receosa ainda sou em relação aos clássicos brasileiros. Não, a melhor palavra é preconceituosa. É, isso aí, eu, Michelle, tenho preconceito com os clássicos nacionais e isso não faz o menor sentido porque eu adoro ler clássicos, principalmente aqueles escritos no século XIX. Ainda não sei apontar a origem do meu preconceito, mas tudo me leva a crer que boa parte dele surgiu por conta daquela história de leituras obrigatórias (que já discutimos aqui) e daquele hábito horroroso que quase todos nós, brasileiros, temos de sempre olhar para as nossas produções culturais com cara feia e nariz torcido, sempre esperando o pior. 

Ao ler Til, percebi que clássicos brasileiros são clássicos como quaisquer outros; têm a sua importância e o seu valor por representarem um povo e um período, sobrevivendo aos séculos até chegarem a nós. É importante saber sobre o passado para que possamos compreender o porquê de sermos como somos e aprender com nossos erros e acertos. Dito isto, através da leitura dos clássicos podemos enxergar o ser humano de outro tempo e analisar as diferenças que sua sociedade tem em relação à nossa. É muito legal perceber que sei um pouco sobre as sociedades inglesa, americana e francesa do passado; mas por que não penso o mesmo quando penso na minha, na sua, na nossa sociedade brasileira?

A Isabella Lubrano, do canal Ler Antes de Morrer, fez um vídeo ótimo questionando o fato de, na maioria dos casos, priorizarmos os livros estrangeiros e apresentando motivos para também lermos literatura nacional. E de todas as muito válidas razões, a que mais dialogou comigo foi a de que quando lemos livros nacionais estamos lendo sobre a nossa realidade, sobre nós, sobre o nosso país. E aí, comecei a pensar com meus botões: de que me adianta entender diferentes sociedades do mundo se não compreendo nem a minha? Isso mesmo, sou brasileira há 25 anos e o que sei do meu país é a realidade de classe média privilegiada de São Paulo. E, obviamente, o Brasil é bem mais que isso. 

Por favor, entendam que com isso não quero dizer que todos devem ler todos os clássicos; falo deles porque estão de acordo com o que eu gosto de ler, mas tudo isso se aplica à literatura brasileira em geral. Percebo que hoje - na verdade, acho que sempre foi assim - há um grande prazer geral em falar mal do Brasil e dos milhares de defeitos que este país tem, sempre comparando com a realidade de países de primeiro mundo. Não, nosso país não é perfeito; aliás, está muito longe disso e muita coisa precisa mudar para que consiga chegar perto de outros países. Penso assim: se vamos criticar algo, precisamos tentar conhecer melhor o objeto de nossas críticas. Não basta se basear apenas em algum conteúdo jornalístico tendencioso, ou em correntes mentirosas compartilhadas pelo Facebook e pelo Whatsapp. É necessário se informar e exercer o pensamento crítico.

Não é segredo para ninguém que a literatura ajuda muito no desenvolvimento do pensamento crítico; e mais que entretenimento, ela nos permite acessar o conhecimento. Assim, por meio da leitura dos clássicos nacionais – e dos livros contemporâneos também! -, não só podemos encontrar histórias interessantes e divertidas, mais também entender a História do Brasil e os acontecimentos que levaram ao momento que vivemos.

Escrevi este texto enorme (se você conseguiu chegar até aqui, muito obrigada e meus parabéns!) para tentar explicar que quero valorizar mais a produção cultural brasileira (em especial, a literatura) porque ela é um retrato do país e dos cidadãos que nele vivem. Isso significa que vou adorar tudo o que eu ler? Não, afinal de contas não sou obrigada a isso. Mas será muito mais fácil encontrar coisas de que eu goste se me livrar do preconceito e encarar tudo com uma mente mais aberta. Se eu não fizesse isso, jamais saberia que José de Alencar escreveu um livro que me agradaria e quem sairia perdendo seria eu, certo?

Texto originalmente publicado na coluna Literalmente Falando, do blog Literature-se.

1 de agosto de 2015

Assassinato no campo de golfe (Agatha Christie) | Hercule Poirot, livro #2

Assassinato no campo de golfe, é o terceiro romance de Agatha Christie e o segundo com o famoso detetive belga Hercule Poirot. Narrado em primeira pessoa pelo capitão Hastings, o mistério tem início quando Poirot recebe uma carta de monsieur Renauld, um milionário sul-americano que solicita os seus serviços com bastante urgência e lhe informa, sem muitos detalhes, que a sua vida está em risco. Intrigado, Poirot resolve partir para a França, onde seu futuro cliente vive. Ao chegar, ele nota que há algo de errado e é logo informado de que monsieur Renauld está morto. Fora assassinado na última madrugada com uma punhalada nas costas e seu corpo fora deixado no campo de golfe próximo a sua residência.

Surpreso e com a impressão de que há algo muito familiar neste caso, Poirot, fazendo uso de suas "células cinzentas", irá juntar as peças do quebra-cabeças que era a vida de monsier Renauld, buscando por motivos e suspeitos até que chegue ao verdadeiro culpado. Mas antes ele terá que enfrentar depoimentos contraditórios de pessoas que conheciam e conviviam com a vítima, além da presença de Girauld, um renomado detetive francês com métodos de investigação bastante questionáveis e que parece determinado a chegar à uma conclusão sobre o caso antes de Poirot.

***

Com uma narrativa envolvente e intrigante - como já era de se esperar da Rainha do Crime -, Assassinato no campo de golfe é um dos casos que mais gostei de ler. A investigação é cheia de detalhes, pistas (verdadeiras ou não) e personagens que prendem a atenção, o que torna impossível largar o livro até que o desfecho seja revelado. O caso, creio que um dos mais complicados que Poirot já encontrou, traz muitas reviravoltas, de forma que a chance de ser surpreendido no final é muito grande. Confesso que, como sempre, tentei investigar junto e errei. Aliás, mesmo com todas as pistas, não cheguei nem perto de descobrir o verdadeiro culpado. Ah, é neste livro que uma personagem é introduzida na vida do capitão Hastings.

A minha edição é a mais recente lançada pela editora Globo Livros, que traz uma capa bem bonita e atraente para os novos leitores, além das amadas páginas amareladas. A diagramação é satisfatória, assim como o tamanho da fonte. Porém, vale atentar para o fato de que alguns erros de revisão passaram. Ainda assim, não chega a ser algo que vá atrapalhar a leitura. 

Por fim, fica aqui mais uma dica de um livro bem legal da Agatha Christie e que, creio, pode funcionar muito bem para aqueles que nunca tiveram contato com o trabalho da autora.

31 de julho de 2015

O Gigante Enterrado (Kazuo Ishiguro)

Quando comecei a fazer parte da comunidade booktuber vários autores se tornaram de meu conhecimento, ainda que nunca tivesse lido nada que tivessem escrito. Um destes autores era o japonês Kazuo Ishiguro, famoso pelo livro Não me abandone jamais (2005). Finalmente pude ter contato com a sua obra e o livro escolhido foi O gigante enterrado, primeiro lançamento do autor em dez anos e publicado recentemente pela Companhia das Letras.


Em O gigante enterrado - uma mistura de fábula e épico de fantasia - somos transportados para um passado mítico e lendário, na Idade Média de poucos anos após a morte do rei Arthur, em um contexto marcado pelos povos bretão e saxão, ogros, pássaros gigantes e fadas. Quando a história tem início, é um momento de paz entre os povos e o leitor é apresentado a Axl e Beatrice, um casal de idosos bretões que decidem abandonar a aldeia em que vivem para ir ao encontro de seu filho - de quem não se lembram muito bem e com quem já não têm contato - em uma aldeia vizinha.

A região foi afetada por uma misteriosa névoa que faz com que a população sofra de um tipo de amnésia coletiva. Pessoas desaparecem e ninguém parece notar; discussões ocorrem e ninguém entende o porquê. Ao se sentirem negligenciados na comunidade da qual fazem parte e com um objetivo em mente, Axl e Beatrice saem em sua nova jornada e têm seus caminhos cruzados por uma série de personagens - incluindo um guerreiro saxão e um cavaleiro arthuriano - e acabam se envolvendo em uma missão que inclui monges malignos e a destruição de uma grande ameaça: um dragão.

O livro é dividido em cinco partes, com capítulos narrados - em sua maioria - em terceira pessoa e que apresentam as perspectivas de diferentes personagens. Apesar de bem escrito, trazer metáforas e fluir com facilidade, confesso que tive problemas com o texto de Ishiguro, que durante as primeiras 200 páginas me manteve presa à leitura, mas que depois começou a me incomodar por conta de uma narrativa que se tornou arrastada e repetitiva. Houve um momento em que não aguentava mais ler os diálogos entre Axl e Beatrice afirmando que iam encontrar seu filho na aldeia vizinha, ou que não se lembravam de uma determinada discussão que tiveram. O mesmo vale para os devaneios enfadonhos de Sir Gawain acerca de seu tempo como cavaleiro do rei Arthur.

Quanto aos personagens, não sei até que ponto gostei deles, porque todos me pareceram bastante unilaterais e sem profundidade, de forma que, mesmo em um universo fantasioso, não consegui acreditar neles. Ainda assim, torci por Axl e Beatrice e fiquei intrigada com Winstan (meu personagem preferido) e Edwin; o mesmo não digo em relação a Sir Gawain, que de uma forma geral, achei bastante irritante. 

Apesar de meu descontentamento com alguns aspectos, acho importante ressaltar que o livro trata de temas universais - como a perda da memória (tanto no aspecto literal, quanto de forma mais simbólica, como quando o tempo passa a parte da história é esquecida), a guerra e suas consequências, a morte e o arrependimento - e deixa margem para diversas reflexões. E ainda levanta uma questão interessante:

O que é melhor: apagar/esquecer o passado e viver feliz ou saber a verdade, recobrando lembranças dolorosas, e ter que viver com as consequências desta decisão?

Por fim, gostei da leitura de O gigante enterrado, mas não sei se foi uma escolha sábia para iniciar o meu contato com o autor, já que esta foi a sua estreia no gênero de fantasia. Ainda que com ressalvas, recomendo a leitura para aqueles que gostam de histórias de fantasia à la O Hobbit, mas com uma pitada de melancolia.

18 de julho de 2015

Os filhos de Anansi (Neil Gaiman)

Desde que entrei em contato com o trabalho de Neil Gaiman, em 2013, tenho certo fascínio em relação ao autor. Não, não conheço nem de longe tudo o que ele já escreveu, mas gostei do pouco que li (Lugar nenhum, O oceano no fim do caminho e Fortunately, the Milk...). Assim, quando soube que a Intrínseca lançaria uma nova edição de Os filhos de Anansi este ano, fiquei bastante empolgada. Afinal, Neil Gaiman é um cara legal, gosta de Doctor Who e escreve histórias de fantasia bem criativas e com senso de humor; logo, o que poderia dar errado? Tudo, meus caros.

Em Os filhos de Anansi – que não é uma continuação de Deuses Americanos, mas, talvez, algo como um spin-off -, somos apresentados à Fat Charlie Nancy, um sujeito bastante azarado e meio fracassado. Durante a infância, Fat Charlie se sentia constantemente humilhado por seu pai, Anansi, que o fazia passar pelas mais constrangedoras situações - que normalmente envolviam um jeito espalhafatoso de se vestir e apresentações de karaokê - e que o transformavam em motivo de piada entre os colegas de escola.

Quando o livro tem início, Fat Charlie – que abandonou os Estados Unidos e seu pai para morar na Inglaterra – vive de forma bastante medíocre, trabalhando para um indivíduo detestável em um escritório que odeia e planejando seu casamento com Rosie, cuja mãe o despreza com todas as forças do universo. Tudo começa a mudar quando Rosie lhe pede para convidar Anansi para o casamento e ele se vê obrigado a enfrentar o seu passado humilhante. 

Ao chegar aos EUA, Fat Charlie é informado de que seu pai está morto e também descobre que ele era, de fato, o deus africano Anansi. O motivo para Fat Charlie não ter poderes é porque estes haviam sido herdados apenas por seu irmão, Spider, cuja existência Fat Charlie ignorava completamente. Alguns dias depois, Spider visita Fat Charlie e transforma a sua vida em um completo caos que envolve magia, troca de identidade e seres mitológicos malignos e vingativos.


É complicado definir o tipo de história presente em Os filhos de Anansi, visto que há uma mistura de diferentes gêneros. Há elementos de fantasia, comédia, sobrenatural e, de acordo com o próprio autor, thriller. A narrativa é simples e flui muito bem, principalmente no início. Os títulos dos capítulos, além de divertidos, combinam com o tom da história, que está carregada do humor característico do texto de Neil Gaiman.

Meu problema com o livro se deve ao desenvolvimento do enredo e à construção bastante falha de mundo e personagens. Durante toda a leitura fiquei com a sensação de que algo estava faltando ao livro até que me dei conta de que se eu tivesse que fechar o livro e nunca descobrir o final, não lamentaria. O fato é que não senti absolutamente nenhuma identificação com nenhum dos personagens e isto é um problema enorme, porque se não gostei dos personagens e/ou não consigo acreditar que eles existem - ainda que seja em uma obra de ficção -, fica difícil manter o interesse pela história.

História esta que, por sua vez, poderia ter sido interessante não fosse a maneira como foi executada. A impressão que tive foi a de que Neil Gaiman teve uma ideia muito boa e que fazia todo o sentido do mundo na cabeça dele, porém, na hora em que ele foi passar para o papel, alguma coisa se perdeu e o resultado foi um livro frustrante, cheio de buracos. Senti falta de uma apresentação mais detalhada do mundo paralelo/fantasioso que ele apresenta, assim como dos elementos da lenda na qual ele se inspirou para criar a história. Em alguns momentos, o autor chega a fazer uso de certa metalinguagem ao utilizar a sua história para falar sobre a criação de histórias, mas no meio de toda a confusão do enredo mirabolante, esta parte ficou meio esquecida.

Dificilmente recomendaria este livro para alguém que nunca teve contato com o autor. Para estes, ainda acho que Lugar nenhum seja uma melhor porta de entrada. Aos que já conhecem o estilo de Neil Gaiman e ficaram na dúvida em relação a Os filhos de Anansi, sugiro que não se deixem levar apenas pela minha opinião e pesquisem outras resenhas antes de se decidirem se irão ler, porque faço parte de uma minoria que não gostou da leitura.

24 de junho de 2015

A última dança de Chaplin (Fabio Stassi)

Há alguns anos, quando comecei a me interessar por cinema e pelos filmes clássicos, a figura de Charles Chaplin se tornou algo com que eu acabava esbarrando de vez em quando. É inevitável, afinal, quando pensamos em História do Cinema, é primordial falar também sobre Chaplin e aquele que se tornou o seu personagem mais conhecido: o Vagabundo (que estrela em alguns dos principais títulos do ator, como O Garoto e Tempos Modernos).

Confesso que não tive, nem de longe, um vasto contado com o trabalho de Chaplin; ainda assim, o considero uma das mais inspiradoras personalidades de Hollywood. Por isso, quando soube do lançamento de A última dança de Chaplin, pela editora Intrínseca, fiquei bastante empolgada porque imaginei que seria uma leitura ótima para me apresentar de forma mais aprofundada a um dos maiores ícones do século XX. Contudo, me enganei, pois não estamos falando de uma biografia (o que é avisado na sinopse), mas sim de uma obra que mistura ficção com realidade, evidenciando o talento e o brilho de seu autor, Fabio Stassi.

Na véspera de natal de 1971, Charles Chaplin, então com 82 anos, recebe a visita da Morte. Ao recordar o que uma cartomante lhe disse anos antes, ele sabe que sua hora chegou, porém, não se sente pronto para deixar a vida e resolve fazer uma aposta com a velha: se ele a fizesse rir, ela deveria permitir que ele vivesse mais um ano. Assim, divertida pelo Vagabundo, a Morte cumpre a sua parte do acordo e promete voltar no próximo natal.

Chaplin, por sua vez, não sabe se conseguirá repetir a façanha, e põe-se a escrever uma carta a Christopher, seu filho mais jovem e que teme não poder ver crescer. Em seu texto, ele discorre a respeito de sua infância conturbada e carente na Londres do final do século XIX, sobre o período em que trabalhou em um circo, sobre a sua chegada aos Estados Unidos – e a série de empregos e aventuras que o país lhe proporcionou - e, claro, sobre a descoberta do cinematógrafo (que aqui não foi uma invenção dos Irmãos Lumière, mas de Arléquim, um homem negro que era responsável pelos animais de um circo). 

Por meio de uma narrativa bastante fluida e envolvente, Fabio Stassi conduz o leitor por aquilo que chamo de uma homenagem a Charles Chaplin. Mesclando elementos reais com a ficção, a história do Chaplin de Stassi – não tão diferente daquela do Chaplin original - é marcada por altos e baixos, frustrações e descobertas. É uma história sobre alguém que procura a sua verdadeira vocação, o seu lugar no mundo e a realização de seus sonhos. 

O livro é dividido em cinco partes (no caso, cinco rolos) que compõe a carta de Chaplin, cada uma delas sendo precedida por uma noite de natal em que a Morte vem fazer a sua visita. Estes trechos são escritos como se fossem roteiros, com os nomes dos personagens indicados antes de suas falas e uma explicação da cena a ser apresentada. Em uma nota, Fabio Stassi explica que sua intenção era escrever uma obra com um andamento musical, dividida em quatro atos; não compreendi muito bem como isso funcionou, porém esta explicação faz com que o título tenha sentido. Também percebi que o autor fez sutis referências aos trabalhos de Chaplin, fazendo seu protagonista passar por situações semelhantes àquelas vividas pelo Vagabundo nos filmes. 

De uma forma geral, a leitura de A última dança de Chaplin foi prazerosa. Passado o momento em que percebi que não estava lendo uma biografia, consegui me prender à história, ficando curiosa a respeito do que viria e me surpreendendo com o belíssimo desfecho. Tenho a sensação de que teria aproveitado melhor se tivesse maior conhecimento da história de vida de Charles Chaplin e/ou de seus filmes.

22 de maio de 2015

A casa assombrada (John Boyne)

Londres, Inglaterra, 1867. 

Eliza Caine é uma jovem professora que culpa Charles Dickens pela morte de seu pai e, consequentemente, por torná-la uma pessoa sozinha no mundo. Afinal, foi após a decisão de sair de casa em uma noite chuvosa e fria para assistir a uma leitura que Dickens faria na galeria Knightsbridge, que seu pai, um entomologista fascinado pela obra do famoso romancista, ficou ainda mais doente e faleceu. 

Sozinha e sem condições de pagar o aluguel da confortável casa em que vivia com o pai, Eliza responde a um misterioso anúncio em um jornal e se torna a nova governanta de Gaudlin Hall, propriedade localizada no condado de Norfolk. Ao chegar à mansão, ela nota, ao ser recebida pelas crianças das quais deverá cuidar, que há algo de estranho no local. Isabella se comporta de maneira muito formal e séria para uma garota de 12 anos e Eustace parece assustado; ambos escondem algo. E, aparentemente, não há nenhum adulto na casa. 

Sem muitas informações sobre quem fez o anúncio, ou sobre as crianças, Eliza resolve fazer perguntas às pessoas que vivem na região, mas todos se mostram bastante incomodados com a menção do nome Gaudlin Hall, se tornam frios e se distanciam. De volta à mansão, uma série de acontecimentos inexplicáveis se apresenta a ela: janelas impossíveis de serem abertas, cortinas que se movem sozinhas, uma estranha sensação de estar sendo observada. E seu desespero aumenta quando descobre que é a sexta governanta que a propriedade teve em menos de um ano. 

De uma forma geral, gostei da leitura de A casa assombrada. O terror em si não foi o que mais me impressionou – tendo em vista que já li outros livros do gênero -, mas sim a forma como John Boyne conduz a história, com a criação de mistérios e a constante atmosfera de suspense. Durante a leitura fiquei o tempo todo com a sensação de que algo estava prestes a acontecer.

A narrativa, envolvente e fluida, é feita em primeira pessoa pela própria Eliza Caine, que com suas impressões dos acontecimentos faz com que o leitor se sinta inserido na história. Gostei de como ela se mostra determinada a entender o que está acontecendo e não se importa com até onde tenha que ir para chegar à verdade (mesmo que tenha que ferir a etiqueta e “se intrometer” na vida alheia). Mesmo que as pessoas fujam de suas perguntas e mudem de assunto, ela sabe que precisa proteger as crianças e não quer ter o mesmo destino das governantas anteriores. 

Além da clara referência a Charles Dickens, o livro me fez pensar em outros dois romances do século XIX. O enredo me lembrou bastante o de A outra volta do parafuso, de Henry James, tanto pelo fato de que ambos trazem governantas como as protagonistas e narradoras, quanto pelo fato de que as mansões em que as histórias acontecem parecem ser habitadas por espíritos. Acredito que a semelhança com o clássico de Henry James seja intencional. Em alguns trechos, a história também me fez pensar em Jane Eyre, de Charlotte Brontë; não tanto pelo enredo, mas pelo elemento casa-antiga-que-guarda-um-segredo. 

Por ser ambientado no século XIX e narrado por uma mulher, o livro apresenta ao leitor um pouco de como era a realidade feminina daquela época, quando uma jovem de 21 anos podia trabalhar, mas o ideal mesmo era ter um marido. Eliza nunca se preocupou com namorados e, depois de terminar os estudos, se tornou professora. Em vários momentos ela é indagada por outras mulheres a respeito de casamento e se ela não pensa em ter filhos, apesar de não ser tão atraente. Mesmo constrangida com as perguntas, ela se mantém firme em sua decisão de ser independente, mesmo que isso desagrade algumas pessoas ao seu redor. Gosto do fato de a protagonista pensar de forma à frente de seu tempo.

No que diz respeito ao desenvolvimento da história, não vou mentir: achei bastante previsível. E talvez isso tenha acontecido justamente por já ter lido a obra de Henry James. Porém, vale a pena mencionar que as duas histórias trazem desfechos diferentes. Enquanto acho o final de A outra volta do parafuso muito bom, o mesmo não posso dizer do que ocorre nos últimos capítulos do livro de John Boyne. Achei tudo muito absurdo e, ouso dizer, mirabolante. Ainda assim, não acho que o final tenha ofuscado a obra como um todo. O livro é bem escrito e sua experiência de leitura é agradável, pois prende a atenção do leitor. Recomendo principalmente para dias frios.

24 de abril de 2015

O Livro Selvagem (Juan Villoro)

Quando tinha 13 anos Juan teve que lidar com uma situação difícil e dolorosa: seus pais se divorciaram. Perdido, assistindo ao sofrimento de sua mãe, sem saber como agir e com raiva do pai, o garoto é enviado para a casa de um tio – na verdade, um primo distante de sua mãe -, onde deverá permanecer durante as suas férias de verão.

Tio Tito é um cara solitário que mora em uma casa antiga, enorme e cheia de cômodos. Ah, e ele tem uma obcessão peculiar: livros. Sua residência é, na verdade, uma grande biblioteca, pois em cada canto – na cozinha, na sala, nos quartos, nos banheiros, nas escadas, etc. – é possível encontrar livros. E a coleção trata dos mais diversos temas, que vão desde “os dentes das avós” até “como governar sem ser presidente”. Contrariado, Juan demora a se adaptar à vida na casa do tio Tito, achando-o um tanto excêntrico e estranhando seus hábitos, como beber chá de cachimbo incessantemente e desprezar qualquer tipo de barulho que interrompa suas experiências de leitura, o que o impede de ter um telefone em casa, por exemplo.

Aos poucos, o garoto começa a compreender a dinâmica da casa e se aventura pelas estantes, mesmo sem gostar de ler, à procura de algum livro que possa lhe interessar. Dividindo o seu tempo entre a leitura e fazer companhia para o tio, Juan recebe deste a missão de encontrar O livro selvagem, um livro misterioso, que não se permite ser lido e que está escondido na biblioteca. Para isso, ele irá contar com a ajuda de Catalina, uma garota que trabalha na farmácia da esquina e que compartilha com Juan a recém descoberta paixão pelos livros. 


Falando de forma direta: amei O livro selvagem, que acredito ser uma das melhores leituras que farei em 2015. Juan Villoro conseguiu, em poucas páginas, apresentar uma história cativante, envolvente e capaz de fazer o leitor sorrir a cada virada de página. A leitura me proporcionou sensações semelhantes às que tive quando conheci dois dos meus livros preferidos: A história sem fim, de Michael Ende, e A sombra do vento, de Carlos Ruiz Zafón.

A narrativa – feita em primeira pessoa por Juan (o personagem) – é simples, fluida e bastante divertida. Por meio dos diálogos entre o protagonista com tio Tito, o autor aproveita para fazer referências e citar autores e livros conhecidos, como Julio Cortazar, A metamorfose, de Franz Kafka e Moby Dick, de Herman Melville. É também através destas conversas que Villoro tenta mostrar a importância e o poder dos livros para a vida de seus leitores.

Ao longo de toda a leitura é possível deparar com uma metáfora belíssima, em que o autor compara livros com remédios e livrarias/bibliotecas com farmácias. De acordo com tio Tito, pessoas doentes vão à farmácia procurando algum medicamento que as faça se sentirem melhor e o mesmo procedimento pode ser aplicado a uma visita a uma livraria ou biblioteca. As pessoas buscam livros que as deixem bem, dizendo aquilo que precisam escutar naquele exato momento. 

O enredo conta também, ainda que de forma sutil, com alguns elementos de fantasia que só o tornam ainda mais interessante. A biblioteca de tio Tito, por exemplo, traz livros que se movimentam quando ninguém os observa, mudando de lugar quando querem ser lidos ou não, podendo também escolher o leitor. Catalina, quando lê uma história, pode transformá-la em algo muito melhor. E há o livro selvagem, que se esconde nas sombras da biblioteca, pois não quer que ninguém o leia.
"Nada tem tanto caráter quanto um livro. Uma biblioteca é um 'almário': uma coleção de almas, sobrinho. Os livros se locomovem como as almas nos cemitérios, para se aproximar ou fugir de alguém". (p.35)

"(...) Há duas maneiras de um livro chegar até você: a normal e a secreta. A normal é aquela em que você o compra, ou alguém lhe dá ou empresta. Já a secreta é muito mais importante: nesse caso, é o livro que escolhe seu leitor. Às vezes, as duas maneiras se confundem. Você acha que decidiu comprar um determinado livro, mas na verdade foi ele que se colocou ali para que você o enxergasse e se sentisse atraído." (p. 37)

Quando faltavam poucas páginas para a conclusão do livro – que tem apenas 192 páginas, vejam só! -, fiquei triste porque não queria que a história chegasse ao fim. Ao mesmo tempo em que fiquei encantada com o universo da biblioteca do tio Tito, não pude deixar de me afeiçoar também aos personagens e acompanhar o desenvolvimento de suas histórias enquanto procuravam o livro misterioso. Gosto muito da forma como o autor foi construindo a relação entre Juan e o tio Tito e de como a literatura e o amor pelos livros se relaciona com tudo isso.

Acho difícil que um leitor apaixonado se sinta de forma diferente, pois O livro selvagem cativa o leitor, que se identifica com Juan descobrindo o mundo da leitura e o poder que os livros têm de nos tocar, nos ajudar e nos transformar. Por isso, a leitura é mais que recomendada; ainda que o livro seja direcionado à um público juvenil, a história é atraente para adultos também.

"Todo livro está adormecido até que um leitor o acorde. Dentro dele vive a sombra da pessoa que o escreveu". (p. 164)

17 de abril de 2015

Sobre expectativas | Vida de Leitora #12

Hoje vamos conversar sobre expectativas, as grandes culpadas por - na maioria das vezes - não gostarmos de uma leitura, ou gostarmos mais do que esperávamos. Penso que muitas de nossas impressões em relação a um livro dependem muito do que pensávamos ou esperávamos deles antes da leitura; e estes fatores estão relacionados à expectativa.

Recentemente, li o bastante comentado Americanah, de Chimamanda Ngozi Adichie. Confesso que logo que o livro foi lançado não tive interesse em lê-lo, porém, minha curiosidade surgiu e cresceu muito conforme eu lia ou assistia as impressões de muita gente que acompanho. A opinião que me pareceu geral é a de que o livro é maravilhoso e provavelmente se transformará em um clássico contemporâneo. Assim, concluí que a leitura seria, no mínimo, interessante e resolvi encarar suas mais de 500 páginas.

Gostei? Sim, mas não tanto quanto imaginei gostar. Tive alguns problemas com a leitura e com a escrita da autora que não convém mencionar no momento. A questão é que meu interesse pela leitura de Americanah surgiu depois de ver as opiniões de outras pessoas e por alguma razão inexplicável aceitei sem margem para erro que o livro é uma obra-prima da literatura contemporânea, sem defeitos, a definição da perfeição. E, obviamente, me frustrei, porque não achei nada disso do livro da Chimamanda. Isso quer dizer que os outros leitores estavam mentindo ao dizerem que o livro é bom? 
Claro que não, estavam apenas expressando as opiniões deles, oras. Errada fui eu que, a partir destas opiniões, passei a enxergar o livro como algo de outro mundo sem sequer ter lido uma página do mesmo, entendem?

Não estou dizendo que é errado esperar algo de uma leitura ou levar em consideração a opinião de outros leitores. Mas prefiro acreditar que, inicialmente, um livro é apenas um livro que poderá, ou não, me agradar; e esta decisão deve ser feita tendo como base apenas a minha experiência com a leitura, sem interferências externas resultantes de expectativas.

Quando leio um livro e não gosto de alguns aspectos, fico incomodada, mas aceito razoavelmente bem os problemas. Porém, quando decido acreditar que a leitura é a nova obra-prima do mundo e encontro nesta algum “defeito”, fico extremamente irritada, me sinto enganada e revoltada. E isso não faz sentido algum, porque ninguém pode garantir com 100% de certeza que qualquer livro publicado é a melhor coisa que já foi escrita. E vale lembrar que o que é bom para mim, pode não ser bom para outra pessoa, certo? Logo, é realmente impossível afirmar de forma objetiva que um livro é horrível ou incrível, porque é tudo uma questão de perspectiva.

Sabendo de tudo isso, evito ao máximo me deixar influenciar por resenhas, sejam estas positivas ou negativas, a respeito de um livro que tenho interesse em ler. Porém, confesso que esta é uma missão difícil quando se trata de um livro bastante popular e comentado, porque sempre sou levada a crer que as páginas em questão irão me encantar ou decepcionar. Porque, sim, há também a possibilidade de as expectativas serem negativas; mas neste caso, acho que a experiência de leitura não é tão afetada e o resultado é agradável. Ano passado, quando comecei a ler Mentirosos, de E. Lockhart, já havia visto tantas opiniões sobre o livro que estava esperando me decepcionar e me culpar por ter perdido tempo com um livro ruim. No entanto, o que aconteceu foi justamente o oposto e me surpreendi.

Ou seja, expectativas podem ajudar ou atrapalhar muito. Ainda assim, prefiro que elas não existam. Prefiro me entregar a uma leitura sem esperar nada – nada mesmo, nem bom e nem ruim – e deixar que a história e a narrativa me mostrem se fiz uma boa escolha ou se apenas perdi o meu tempo. É difícil agir dessa forma e, como ficou claro pelo primeiro exemplo, nem sempre dá certo; mas, quando funciona, é ótimo e me poupa do estresse que é terminar um calhamaço com um sentimento de frustração. Digo isso porque se não tivesse esperado muito de Americanah, poderia até ter gostado mais dele.

Assim, meu conselho como leitora para vocês, também leitores é: não criem expectativas, nunca. 

Texto publicado originalmente na coluna Literalmente Falando, do blog Literature-se.

31 de março de 2015

Razão e Sensibilidade (Jane Austen)

Publicado em 1811, Razão e sensibilidade é o primeiro trabalho de Jane Austen e foi aclamado já na época de sua publicação, que ocorreu de forma anônima. O romance traz a história das irmãs Elinor e Marianne Dashwood, que com suas personalidades e comportamentos opostos, representam a dualidade que dá título à obra.

No início do romance, Austen nos apresenta à família Dashwood - composta pelo Sr. Dashwood, sua esposa e suas três filhas (Elinor, Marianne e Margaret) -, que vive na renomada Norland Park, uma grande e belíssima propriedade localizada em Sussex, Inglaterra. O Sr. Dashwood se casou duas vezes, portanto sabe que de acordo com as leis vigentes na época, na ocasião de sua morte, sua esposa e filhas seriam deixadas sem nada, e sua fortuna e propriedade seriam entregues a seu filho primogênito, fruto de seu primeiro casamento. Durante o período retratado por Austen, mulheres não tinham direito à herança ou ao trabalho, assim, seu sustento seria garantido por seus familiares homens ou por um bom casamento.

Após a morte do Sr. Dashwood, que ocorre logo nos primeiros capítulos, suas filhas e esposa são deixadas à mercê da boa vontade de seu herdeiro, o Sr. John Dashwood. Este, por sua vez, acreditando estar fazendo mais que a sua obrigação, oferece à madrasta e às suas irmãs uma mísera quantia em dinheiro, o que as obriga a procurar uma nova residência que esteja de acordo com a nova renda. Assim, as Dashwood se mudam para Devonshire, onde passam a viver em um chalé emprestado por Sir John Middleton, um primo distante da Sra. Dashwood. E é neste novo e diferente ambiente – marcado por situações inconvenientes e pessoas, aparentemente, sem refinamento - que as duas protagonistas irão deparar com as primeiras dores resultantes de decepções amorosas.

Antes de partir para Devonshire, Elinor se apaixonou por Edward Ferrars, cunhado de seu irmão, que parece retribuir o seu sentimento, apesar de adotar uma postura mais tímida e reservada. Mesmo sabendo que o Sr. Ferrars está destinado a uma dama rica, Elinor não deixa de sonhar com a possibilidade de um dia poder ser a sua esposa e fica bastante frustrada ao ter que deixá-lo, passando a sofrer de forma silenciosa. Marianne, por sua vez, se apaixona perdidamente por Willoughby de Allenham, um cavalheiro que a salva após uma queda em um dia chuvoso. Ao contrário da irmã, Marianne é bastante efusiva em relação aos seus sentimentos, deixando claro para todos o que pensa e sendo incapaz de compreender a postura fria e calada de Elinor em relação a Edward.

Por meio da busca dessas duas irmãs por um final feliz, Jane Austen entrega ao leitor muito mais do que uma história de amor. Ela nos apresenta um romance sobre os costumes de uma época e de uma sociedade rígida, injusta e hipócrita; e ao criticar esta realidade, a autora faz uso de seu já conhecido senso de humor marcado pela ironia e pela exposição de seus personagens ao ridículo.

***

Acho muito difícil falar sobre este livro, porque sinto que por mais que tente, jamais conseguirei ressaltar tudo o que há de incrível neste clássico. Gosto muito da forma sutil como Jane Austen se utiliza de uma história de amor para criticar os costumes de sua época. Por meio do cotidiano dessas mulheres e suas vidas domésticas, a autora atenta para algumas questões que um olhar mais despercebido pode deixar passar batido.

Já perdi as contas de quantas vezes li comentários de pessoas dizendo que os livros de Jane Austen são superficiais, bobinhos e com personagens que apenas buscam um casamento. Creio que tais pessoas não levaram em consideração o contexto das histórias de Austen ao formularem os comentários. Pois, ao considerar a realidade das mulheres daquela época - que não podiam trabalhar, ir para a escola/universidade ou herdar uma fortuna -, compreende-se que o que elas poderiam esperar de melhor em suas vidas era, de fato, um bom casamento como forma de sustento. A “rebeldia” das heroínas de Austen está no fato de elas, apesar de não aceitarem a realidade em que estão inseridas, tentarem ser feliz nela, buscando um casamento feliz, ao lado de um homem que as aceite como são, retribuindo o afeto e respeitando-as intelectualmente.

Em Razão e sensibilidade, as heroínas têm personalidade e sabem o que querem, mesmo que seus desejos mais íntimos não estejam de acordo com as expectativas da sociedade. Marianne (que lembra um pouco Catherine Morland, de A abadia de Northanger) não tem medo de falar o que pensa, mesmo que sua honestidade possa ser interpretada como grosseria. Elinor despreza a noção de que um casamento bem sucedido se baseia em posses e poder econômico. Ambas querem casar por amor e lutam para que isso aconteça.

Ao apresentar duas protagonistas tão opostas, a autora também traz à tona um dos debates mais populares acerca da natureza humana: razão x emoção. No início do século XIX (cenário no qual o livro foi escrito), o Romantismo, com seu culto à sensibilidade, fazia oposição aos ideais iluministas, que prezavam pela razão. Por meio das heroínas em Razão e sensibilidade, o leitor entra em contato com as duas vertentes opostas de pensamento. Elinor, a razão, é uma jovem sensata, que esconde seus sentimentos e que sempre pensa muito antes de agir. Marianne, a emoção, é dramática, impulsiva e expansiva; todos sabem o que pensa ou sente; para ela, só é possível ter sentimentos se estes forem externados.

Além da dicotomia entre razão e emoção, o livro trabalha com outras formas de opostos, seja ao apresentar diferentes maneiras de olhar para um mesmo assunto (casamento como um negócio x casamento por amor) ou, mais uma vez, pelas personalidades dos personagens (Coronel Brandon x Willoughby, Elinor x Lucy Steele, Elinor x Srta. Morton, Marianne x Eliza, Marianne x Srta. Grey, Edward x Robert).

Em Razão e sensibilidade, Austen trata de outra questão comum em seus livros: a de preconceitos e julgamentos a partir da aparência de algo ou alguém. Como sempre, tais julgamentos são errôneos. A Sra. Jennings, por exemplo, é vista o tempo todo por Marianne como uma velha sem classe e inconveniente que só quer saber sobre a sua vida amorosa para fazer fofoca; porém, conforme a trama avança, a jovem percebe que, na verdade, a Sra. Jennings, apesar de seus defeitos, é uma mulher bastante maternal e que se preocupa com ela. Há também o caso de Willoughby, que surge como um príncipe encantado montado em um cavalo branco, mas que aos poucos vai se revelando justamente o oposto. Tanto os enredos, quanto os personagens de Jane Austen são marcados por camadas; tudo é muito mais profundo do que parece.

Quanto ao final, é preciso dizer que Jane Austen gosta de conceder finais felizes para suas heroínas e com Razão e sensibilidade não poderia ser diferente. Ambas as irmãs encontram desfechos muito positivos para jovens de sua época e, enquanto concordo com o fim de Elinor, não sei se posso dizer o mesmo em relação à Marianne. Fiquei com a sensação de que, de alguma forma, a autora resolveu punir a personagem por seu excesso de sentimentalismo, dando-lhe um final que pende mais para o lado racional. Ainda que fique claro, ao final da obra, que Austen defende a ideia de que é necessário que haja um equilíbrio entre razão e emoção, não consigo deixar de pensar que ela defende muito mais o lado da razão, enaltecendo o comportamento de Elinor e criticando o de Marianne.

Por fim, no que diz respeito à narrativa, a leitura flui bem no início e no fim, mas se torna lenta no meio. Há partes em que nada parece acontecer e, mesmo que o livro não deixe de ter seu encanto e despertar o interesse, nestes momentos se torna enfadonho. Também fiquei incomodada com o excesso de páginas dedicadas aos sofrimentos de Marianne em oposição às poucas oferecidas à Elinor, mas isso é mais uma questão de gosto, visto que Elinor é a minha preferida na história. No entanto, mesmo com um ritmo meio inconstante, a leitura de Razão e sensibilidade é extremamente válida e recomendada.

27 de março de 2015

Sobre spoilers | Vida de Leitora #11


Esta semana concluí a leitura de Razão e Sensibilidade, de Jane Austen, e fui correndo para a internet procurar opiniões de outras pessoas sobre o livro. Um dos vídeos que mais gostei de assistir foi o da booktuber canadense Ariel Bissett (para assistir, clique aqui), que aborda os principais temas tratados na obra clássica e comenta também sobre suas partes preferidas. Porém, enquanto assistia Ariel falando sobre as suas impressões de leitura deparei com uma indagação de minha parte e, creio, da parte de muita gente.

Em certo ponto do vídeo, Ariel fala sobre uma descoberta realizada pela heroína Elinor Dashwood apenas na metade do livro, revelando um trecho essencial do enredo. Assim, não pude deixar de pensar "pera, mas assim estraga a experiência de quem não leu o livro ainda". E aí, me pergunto: o que é um spoiler? Até quando a revelação dos acontecimentos de um livro pode ser considerada um spoiler?

Aos que não estão familiarizados com o termo, spoiler deriva da expressão de língua inglesa to spoil, que em uma tradução livre seria algo como estragar, e não diz respeito apenas ao universo literário; filmes e séries de televisão também podem ser estragados pela revelação de spoilers. Assim, se você não quer saber o que vai acontecer com o seu personagem preferido de um seriado, por exemplo, é muito importante ter cuidado por onde anda nesta terra de ninguém chamada internet. Vivemos em uma era muito ágil e é apenas uma questão de minutos até que uma informação caia da rede. Mesmo assim, com todo o cuidado do mundo, você ainda corre o risco de descobrir o desfecho de um livro antes de lê-lo. E aí, novamente, questionamos o que é, de fato, um spoiler.

Por exemplo, O sangue do Olimpo, desfecho da série Os heróis do Olimpo, foi lançado no final do ano passado e tem muita gente que ainda não o leu (tudo bem que estamos em março, mas livros demandam mais tempo que filmes, certo?). Então, se em uma conversa entre dois amigos, um revela ao outro o que acontece no final, penso que a revelação é um spoiler, visto que estragou a experiência daquele que ainda não leu. Por outro lado, temos os clássicos, como o citado Razão e sensibilidade, escrito há mais de 200 anos. Seria a revelação de um aspecto do enredo um spoiler? Tendo em vista que estamos falando de uma obra que sobreviveu a dois séculos, já foi adaptada para cinema e televisão e é encontrada em diversas referências na cultura pop, é de imaginar que muita gente já saiba o que acontece na história e, por isso, falar sobre fatos reveladores da trama não necessariamente é considerado um spoiler, certo? Não sei.

Há quem diga que qualquer informação que entregue muita coisa do enredo é um spoiler, não importa há quantos anos a obra exista. Há aqueles que entendem como spoiler qualquer revelação de acontecimentos de obras recentes e não se importam se descobrirem o final de um clássico, por exemplo. Eu, particularmente, evito buscar qualquer tipo de informações relacionadas aos livros que estou lendo ou tenho a intenção de ler. Faço isso porque gosto que meu contato com uma obra não sofra interferências externas e eu possa formar as minhas impressões com base no que eu, de fato, consegui capturar da leitura. Da mesma forma, evito comentar acontecimentos que considero reveladores - mesmo em clássicos - em minhas resenhas; se por alguma razão precisar falar o que acontece, aviso que spoilers virão. Assim, a pessoa decide se quer continuar a ler a resenha ou a assistir ao vídeo.

Esta é uma discussão na qual creio que não exista um certo e um errado, mas sim diferentes pontos de vista. Por isso, não consigo encontrar uma solução para o meu dilema.

Texto originalmente publicado na coluna Literalmente Falando, do blog Literature-se. 

19 de março de 2015

Objetos Cortantes (Gillian Flynn)

Em Objetos Cortantes, o romance de estreia de Gillian Flynn (autora de Garota Exemplar), o leitor é apresentado a uma trama de suspense, mistério policial e drama familiar. Camille Preaker, uma mulher de trinta e poucos anos que trabalha como repórter em Chicago, Illinois, se descreve como medíocre em seu trabalho. Pouco tempo após sair de uma internação em um hospital psiquiátrico, ela recebe uma pauta de seu editor e terá que voltar à pequena Wind Gap, sua cidade natal localizada no estado do Missouri (EUA), para cobrir o caso de crimes cometidos contra duas garotas locais. Uma delas foi brutalmente assassinada e seu corpo foi encontrado sem dentes. A outra está desaparecida.

Oito anos após abandonar Wind Gap com a certeza de que não voltaria para lá tão cedo, Camille se vê obrigada a entrar em contato com seu passado, seus colegas da adolescência e sua família bastante disfuncional. Adora, sua mãe, é a mulher mais rica da cidade, além de completamente neurótica. Alan, seu padrasto, sempre se manteve distante. Amma, sua meia-irmã adolescente, é uma completa estranha. Sem manter contato com os familiares durante a sua ausência, Camille vira hóspede na casa de sua mãe e passa a ser atormentada por recordações dolorosas do período em que ali vivera, incluindo a morte de Marian, sua irmã, há muitos anos.

Aos poucos, conforme se insere novamente na comunidade da qual fez parte, Camille começa a juntar informações para a sua matéria e, ao mesmo tempo, luta contra o tempo e a má vontade dos locais para conseguir alguma declaração oficial sobre as investigações dos crimes. Assim que suas perguntas começam a encontrar algumas respostas, ela percebe que a cidade esconde segredos perturbadores e sombrios.

Já fazia tempo que queria conhecer o trabalho de Gillian Flynn e resolvi começar por Objetos Cortanteslançamento de fevereiro da editora Intrínseca. A partir desta primeira leitura, já pude sentir que a autora não evita tratar de temas delicados e polêmicos por medo de não agradar ao público.

Em termos de expectativas – que não eram altas para evitar frustrações com livros e/ou autores amados por muitas pessoas -, as minhas foram alcançadas. Não sabia muito bem o que iria encontrar e, de forma alguma, adivinhei o que o livro me traria. Gillian Flynn é uma autora bastante talentosa; a forma como ela escreve e conduz os acontecimentos deixam o leitor completamente envolvido e com vontade de chegar rapidamente ao final para saber o que vai acontecer com os personagens.

Narrado em primeira pessoa pela protagonista, o livro apresenta uma história linear marcada por algumas intervenções do passado feitas pela narradora. No tempo presente, quando Camille inicia a sua apuração dos ocorridos em Wind Gap, tudo é apresentado conforme vai acontecendo, porém, com frequência sua narrativa é interrompida por recordações do período em que vivera ali. Assim, o leitor só passa a ter conhecimento da real relação entre Camille e Adora por meio das divagações da primeira.

Camille é uma das protagonistas mais diferentes com quem já deparei em minhas leituras. Ao mesmo tempo em que consegui enxergar muita determinação e força em sua maneira de agir, não pude deixar de achá-la bastante vulnerável e frágil; principalmente quando está diante de sua mãe; e isso está completamente relacionado à sua internação em um hospital psiquiátrico e seus problemas com o consumo de álcool. Adora, por sua vez, me desagradou desde a sua primeira aparição. Ela é uma mulher fria, desequilibrada e controladora; e a forma como trata as suas filhas é, no mínimo, assustadora. Despreza Camille e dirige à Amma uma adoração doentia. Ambas vivem à sombra de Marian, a irmã perfeita e morta há anos.

Amma, devo confessar, foi a personagem que mais me fascinou no livro. Enigmática do início ao fim, a garota é detestável e imprevisível. Ela é a mais popular e bonita do colégio, consegue tudo o que quer e é capaz de irritar adultos de uma forma inexplicável. De forma contraditória, há momentos em que é adorável e gentil. Assim como Adora, ela é bastante manipuladora e o leitor, assim como Camille, nunca consegue interpretar os motivos por trás de seu comportamento volátil. 

Wind Gap, com seus costumes tradicionais e conservadores típicos de cidades pequenas, constitui um cenário propício para o tipo de história que Gillian Flynn se propõe a contar. É uma cidade em que todo mundo se conhece, marcada por boatos, disputas sociais e, claro, aparências que escondem vidas vazias e problemáticas. Os crimes cometidos contra as duas garotas choca a comunidade, que prefere acreditar que o responsável é alguém de fora, ao invés de um conhecido. A polícia se recusa a dizer algo sobre as investigações e a comunidade, de forma geral, enxerga Camille como uma intrusa, oportunista que apenas quer usar a dor local como um meio de vender mais jornais. (Neste ponto, a autora aproveita para, de forma sutil, apontar para uma realidade de nossa sociedade). Justamente pela relutância da polícia em declarar algo sobre o caso, Camille começa a sua própria investigação como uma forma de obter informações para a matéria. E é por meio de cidadãos comuns, com suas fofocas e verdades constrangedoras, que a solução surpreendente e medonha começa a se desenrolar.

Não vou mentir, esperava mais da investigação em si. Porém, conforme avançava na leitura, me dei conta de que a história era mais um drama familiar do que um mistério policial. Assim, me contentei em tentar compreender os motivos para a relação extremamente disfuncional entre Camille, sua mãe e sua irmã. Vale ressaltar que por meio da relação entre mãe e filha, Gillian Flynn trata de uma questão que contraria um pensamento generalizado que existe na sociedade em que vivemos: o de que mulheres não podem ser cruéis. Aceitamos de forma muito fácil que homens podem ser assassinos, sequestradores, torturadores, etc.; porém, dificilmente imaginamos uma mulher que se enquadre em tais perfis. Porém, com as ações de Adora e a maneira como ela trata suas filhas, assim como o comportamento de Amma, fica claro para o leitor que mulheres – mães inclusive – podem sim ser muito cruéis. E a forma como essa ideia se apresenta no livro é profundamente doentia, gerando desconforto ao leitor.

E acho que essa foi mesmo a intenção da autora, fazer o leitor se sentir mal e incomodado. A história é realmente pesada. É forte, violenta e perturbadora. Terminei a leitura por volta das 3h da manhã e ainda fiquei mais uma hora remoendo aquele final e tentando entender qual é a mensagem que Gillian Flynn quis transmitir. Até o momento em que escrevo este texto não consegui me decidir se gostei ou não do livro, mas garanto que gostei muito da experiência de leitura e acho que, apenas por este fato, Objetos Cortantes merece ser lido e recomendado. Se com seu livro de estreia, Gillian Flynn já conseguiu me afetar assim, imagino o que os outros farão. Garota exemplar já aguarda na estante.

13 de março de 2015

Sobre atropelar leituras | Vida de Leitora #10


Oi, meu nome é Michelle e eu tenho um sério problema: eu atropelo as minhas leituras. Hoje quero conversar com vocês sobre um hábito que tenho como leitora e que vem me incomodado um pouco ultimamente. Venho, por meio deste post, procurar aqueles que como eu também sofrem deste mal e, quem sabe, encontrar alguma justificativa para tal comportamento.

Mas antes, vamos às explicações. O que quer dizer atropelar as leituras? Basicamente, atropelar uma leitura consiste em você largar um livro por conta de outro, mas não porque o primeiro seja ruim, e sim porque o segundo promete ser igualmente interessante. Vou exemplificar com uma situação real pela qual passei nesta última semana. Estou lendo o comentadíssimo Americanah, de Chimamanda Ngozi Adichie, e gostando muito da leitura; porém, recentemente, recebi um exemplar de Objetos cortantes, da famosa Gillian Flynn, que me intriga bastante, pois adoro um bom livro policial e morro de curiosidade para conhecer o trabalho da autora. Resultado: atropelei a leitura de Americanah e comecei Objetos cortantes. Não abandonei a leitura do primeiro, mas estou intercalando com a leitura do segundo. Ambos os livros, cada um à sua maneira, são bons.

Agora, pensem que antes de começar Americanah, atropelei a leitura de Razão e Sensibilidade, clássico de Jane Austen, autora cujo trabalho me agrada bastante. Estou lendo os três livros ao mesmo tempo; quatro, se somarmos o Profissões para mulheres e outros artigos feministas, de Virginia Woolf, que estou lendo mais devagar. Ah, tudo isso e mais o As aventuras de Robin Hood, de Alexandre Dumas, que está em stand by durante o mês de março. Entendem onde quero chegar? É muita leitura simultânea para pouco tempo. É muita vontade de ler várias coisas para uma pessoa só.

Juro para vocês que não sei o porquê deste meu comportamento. Não sei por qual razão sofro de tamanha impaciência que me impede de agir de forma normal e ler apenas um livro de cada vez. Se formos considerar que estou lendo uns cinco livros ao mesmo tempo, obviamente, não terminarei nenhum deles tão cedo, logo, esse comportamento não tem lógica alguma e só atrasa mais as leituras. 

Em uma tentativa de desvendar o mistério do meu atropelar das leituras, usei a desculpa de que intercalo livros para não me enjoar das histórias. Ou a de que tenho tanta sede por novas tramas que, simplesmente, começo a ler tudo de uma vez. A primeira desculpa até faria sentido se eu estivesse intercalando dois tipos diferentes de texto - um romance e uma biografia, por exemplo -, mas o que acontece está longe disso. Apenas um livro é de não-ficção, enquanto os demais diferem apenas no estilo de história. No fundo, acho que a segunda desculpa tem um certo fundo de verdade. Tenho sim muita vontade de conhecer diferentes histórias, explorar novos universos e, claro, conhecer o trabalho de muitos autores; porém, há de se concordar que dá para fazer tudo isso com uma dose de calma e paciência, certo? Acho que o que rola é aquele desespero de saber que há muita coisa boa para ser descoberta na literatura e que, por mais que tentemos, não iremos conseguir ler tudo o que existe para ler no mundo. A vida é curta, infelizmente.

Assim, tentamos nos contentar com aquilo que conseguimos ler e fazemos o possível para não esbarrar em livros ruins pelo caminho. E, claro, atropelamos as leituras. As atropelamos na esperança de que, agindo dessa forma, o desespero de saber que a vida é curta será amenizado, afinal de contas, estamos lendo o máximo que podemos em um curto espaço de tempo, certo? Bom, não sei em relação a vocês, mas para mim é errado. Por mais que eu tente me convencer que esse hábito deixa as minhas leituras mais dinâmicas, sei que não é bem assim que me sinto em relação a elas. Em uma das prateleiras do meu quarto, coloco os livros que estão em andamento e, ultimamente, quando olho para ela sinto um incômodo, porque 1) não era para ter tanta coisa lá e 2) estou gostando de todos os livros, então não sei qual deles escolher para ler antes de dormir. E, acreditem, isso é bem perturbador, porque perco uns bons minutos tentando escolher qual será a leitura da noite. Minutos que poderiam ser gastos com a leitura propriamente dita. Viram só? Não faz sentido algum. 

Ah, e acabei de me dar conta de que também estou lendo A Dança dos Dragões, de G.R.R. Martin. É, mais essa. E o livro é enorme. Acho que já deu para ter uma ideia do caos que anda a minha vida de leitora, né? Drama à parte, sei que não estou sozinha, então, se tiver alguém aí na mesma situação, sinta-se abraçado, ok? Não surte, vai dar tudo certo. E se alguém já passou por algo parecido, por favor, diga como foi que você fez para sair dessa situação ou para abandonar esse hábito? Sua ajuda será muito bem-vinda. Obrigada.


Texto originalmente publicado na coluna Literalmente Falando, do blog Literature-se.

6 de março de 2015

Alta Fidelidade (Nick Hornby)

(...) O que vem antes, a música ou o sofrimento? Eu ouvia música porque sofria? Ou sofria porque ouvia música? Será que aqueles discos todos é que me deixavam melancólico? (p.30)
Ambientado na Londres dos anos 1990, Alta Fidelidade, de Nick Hornby, traz a história de Rob, um cara de 35 anos que trabalha em uma loja de CDs, da qual também é dono. Após o fim de seu longo relacionamento com Laura, Rob tenta superar o ocorrido listando os cinco piores términos de namoro de toda a sua vida – começando pela primeira namorada, que conheceu nos tempos de colégio, até chegar às relações da fase adulta.

Ele é completamente obcecado por música, e passa a maior parte do seu tempo consumindo álbuns de seus artistas preferidos, adquirindo vinis novos e raros para a sua coleção e gravando mixtapes. Basicamente, sua existência se resume a abrir e fechar a loja e, entre essas funções, passar horas e mais horas na companhia de Dick e Barry – os funcionários da loja, de quem não gosta muito – conversando sobre música, insultando clientes que, aparentemente, não tem tanto conhecimento sobre o assunto e sofrendo por causa de Laura. Assim como Rob, Dick e Barry não tem uma vida além da loja.

Por meio de uma narrativa em primeira pessoa, Rob tenta nos convencer – no caso, convencer sua ex – de que o fim do namoro com Laura não foi, nem de longe, o mais humilhante de sua vida. Assim, por meio de seu TOP 5, nos transporta aos diferentes períodos de sua história, nos apresentando suas antigas namoradas e explicando as circunstâncias em que tais relacionamentos chegaram ao fim; tudo acompanhado de uma lista de músicas que marcaram aqueles momentos. Ao falar sobre esses relacionamentos, Rob deixa claro o impacto que cada um teve em seu futuro e tenta compreender o que aconteceu entre ele e Laura para que chegassem ao ponto em que chegaram. 

Com essa premissa, Nick Hornby, com uma escrita fluída e envolvente, apresenta o leitor a um drama sobre relacionamentos na modernidade que se transformou, segundo o The Guardian, em um clássico imediato. Apesar de ambientado 20 anos atrás, o enredo e os temas abordados em “Alta Fidelidade” permanecem atuais. Por meio da história de Rob, o autor trata de alguns dos problemas mais comuns ao ser humano do século XXI: o medo de relacionamentos e de confiar em outra pessoa, a dificuldade para amadurecer e o excesso de egoísmo e egocentrismo.

***

No fundo, o livro é um monólogo, no qual o protagonista tenta se encontrar, se fazendo de vítima e culpando suas ex-namoradas pela vida frustrante que leva. Rob é desagradável, pedante e imaturo e isso transparece em sua narrativa, de forma que o leitor consegue enxergar como ele é, mas ele não. Ele é uma pessoa superficial, que julga as outras tendo como base interesses e conhecimentos musicais, e se estes não estiverem de acordo com o que ele julga interessante, a pessoa se torna descartável. Ele não está pronto para um relacionamento sério, mas ao invés de assumir isso, prefere por a culpa na ex, dizendo que ela gostava de bandas que para ele eram intragáveis, e não aceitando que ela saia à procura de alguém que espera o mesmo que ela em um relacionamento.

Mas aquilo ali continha uma verdade séria e essencial, a de que essas coisas importam mesmo, portanto não é legal fingir que uma relação tem futuro quando as coleções de disco divergem violentamente, o quando os filmes preferidos de cada um nem conversariam caso se encontrassem em uma festa. (p. 117)

Mesmo sem simpatizar com Rob, não pude evitar sentir alguma identificação com algumas das coisas que ele diz, principalmente em relação a suas impressões sobre a música em geral e o poder que ela tem de modificar o nosso humor e nos trazer esperança em momentos em que tudo parece perdido. Gostei também de sua sinceridade em relação a algumas normas do comportamento social que, para ele, não fazem o menor sentido. Muitas vezes ele fala algumas coisas que podem incomodar, mas, quando paramos para pensar percebemos que não são tão absurdas e a gente até já pensou nelas, mas nunca as tornamos públicas.

Talvez vivamos, todos nós que passamos os dias absorvendo material emocional, num estado de alta intensidade, e consequentemente jamais consigamos estar simplesmente contentes: precisamos estar infelizes, ou absurda e apaixonadamente felizes, e esses são estados difíceis de se obter numa relação sólida e estável. (p. 166)

Por fim, “Alta Fidelidade” é um livro interessante, de fácil leitura, que proporciona algumas reflexões nas entrelinhas e está recheado de referências musicais. Gostei bastante da escrita de Nick Hornby e, com certeza, pretendo ter mais contato com seu trabalho. Leitura recomendada!